...ou
“A deformação masoquista da memória”,
foi assim que Josef se referiu à apatia a que sentia do seu passado em sua
terra natal. Essa ideia subversiva Milan Kundera retrata no romance “A Ignorância”.
O
autor desenvolve toda a história em torno da nostalgia e explica,
etimologicamente, que nostalgia “é, portanto, o sofrimento causado pelo desejo
irrealizado de retornar” (Pág. 09). Esse sentimento liga-se também à
ignorância: só há nostalgia daquilo de que não temos mais notícia. E ignorância
é a palavra ou variante de nostalgia.
Após
a queda do regime comunista no Leste Europeu, Irena viaja de volta a Praga após
20 anos de exílio em Paris. Chegando a sua terra natal, reencontra-a totalmente
reerguida e modificada e percebeu que se tratava de um lugar de que não
guardava nenhuma recordação.
“(...)
a memória, para que possa funcionar bem, tem necessidade de um treino
incessante: se as lembranças não forem evocadas, continuamente, em conversas
com os amigos, elas desaparecem. Os exilados, reunidos em colônias de
compatriotas, contam entre si até a exaustão as mesmas histórias, que, desse
modo, se tornam inesquecíveis. Mas aqueles que não frequentam seus compatriotas,
como Irena ou Ulisses, são inevitavelmente atingidos pela amnésia.” (Pág. 31)
Ao
rever algumas velhas amigas, Irena teve a certeza de que para elas, o tempo em
relação a si tinha parado e que só agora estava sendo retornado, ignoravam o
fato de que retornava uma mulher madura, com uma vida atrás de si da qual se
orgulhava.
Em
paralelo, o livro também conta a história de Josef, outro exilado que retorna a
Praga para rever o que restou da família e reencontra o irmão depois de 20 anos
que ainda morava na casa de sua infância.
“Ele
toca a campainha e o irmão, cinco anos mais velho do que ele, abre a porta.
Trocam um aperto de mão e se olham. São olhares de imensa intensidade e eles
sabem bem do que se trata: face a face, os irmãos registram, rapidamente,
discretamente, seus cabelos, suas rugas, seus dentes; cada um sabe o que
procura no rosto à sua frente e cada um sabe que o outro procura exatamente a
mesma coisa no seu. (...) procuram no outro o que transparece da morte.” (Pág.
48/49)
Irena
reencontra Josef por acaso no aeroporto de Paris. Em comum, eles têm uma
história de exílio e um sentimento profundamente nostálgico em relação à paisagem
tcheca e são conduzidos pelo narrador a reviver uma história de amor que então,
na sua terra, fora apenas iniciada.
Outros
componentes emocionais enriquecem a obra, sempre com a marca da extraordinária
leveza da escrita de Kundera.
- Outras citações:
“E, sobretudo, no estrangeiro Josef se
apaixonou, e o amor é a exaltação do tempo presente. Seu apego ao presente
afastou as lembranças, protegeu-o contra as intervenções dela; sua memória não
se tornou menos maldosa mas, negligenciada, afastada, perdeu o poder sobre
ele.” (Pág.64).
“A
memória, ela também não pode ser compreendida sem uma abordagem matemática. O
dado fundamental é a relação numérica entre o tempo da vida vivida e o tempo de
vida armazenado na memória. Nunca se tentou calcular essa relação e, aliás, não
existe nenhum meio técnico de fazer isso; no entanto, sem grande risco de
engano, posso supor que a memória não guarda senão um milionésimo ou um
bilionésimo, em suma, uma parcela ínfima da vida vivida. Isso também faz parte
da essência do homem. Se alguém pudesse reter na memória tudo que viveu, se
pudesse a qualquer momento evocar qualquer fragmento do passado que quisesse,
não teria nada a ver com os humanos: nem seus amores, nem suas amizades, nem
suas raivas, nem sua faculdade de perdoar ou se vingar se pareceriam com os
nossos.” (Págs. 99/100)
KUNDERA,
Milan. A ignorância. São Paulo: Companhia das Letras: 2002.
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