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Gustavo Flávio em Bufo & Spallanzani.

quarta-feira, 11 de março de 2015



Rubem Fonseca certamente será figura carimbada aqui no Metáforas & Reticências. O motivo? Ele nos apresenta os melhores romances do gênero policial da literatura contemporânea brasileira (Já tinha lido outros romances do gênero, principalmente os da Agatha Christie, mas não tinham me cativado tanto). Uma obra tem me levado à outra. É que Rubem Fonseca tem o hábito de resgatar personagens de romances anteriores e dar à eles uma continuação, inserindo-os em novas tramas e nos apresentando novas características a seu respeito. Bem assim foi com Gustavo Flávio. Em “Bufo & Spallanzani”, nosso escritor (fictício) faz sua primeira aparição e é nessa obra que podemos conhecer o passado desse personagem, do qual já falei um pouco quando fiz a resenha de “E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto”. 

Gustavo Flávio (que desconfio ser um alter ego do Rubem Fonseca), narra o romance e o transforma em seu livro de memórias. Aqui, nosso protagonista revela o seu passado, relata o assassinato de Delfina Delamare (e o seu envolvimento), sua impotência criativa para escrever seu novo romance e, claro, sua movimentada vida amorosa (se não fosse assim não seria Gustavo Flávio, convenhamos).

Em “Bufo & Spallanzani”, pude conhecer outros livros escritos por Gustavo Flávio (fui tomando nota de cada um no decorrer da narrativa, porém nem todos tinham especificados do que se tratavam), são eles: “Morte e esporte: agonia como essência”, “Os amantes” (uma história de amor entre uma cega e um surdo-mudo), “Trápola” (um romance policial), “A dança do morcego” e “Joseph Mengele, o anjo da morte”, bem como conhecer outras amantes, como Zilda, Minolta e Madame X (mais tarde revelada como Delfina Delamare).

Não tenho a intenção de fazer um resumo da obra (isso já existe em demasia na internet, CLIQUE AQUI), gosto de fazer breves apontamentos sobre o livro, e dos protagonistas muito bem construídos por Rubem Fonseca que, neste caso, é Gustavo Flávio.

- Citações:


“’O escritor é vítima de muitas maldições’, eu disse, ‘mas a pior de todas é ter de ser lido. Pior ainda, ser comprado. Ter de conciliar sua independência com o processo da sua consumação. Kafka é bom porque não escrevia para ser lido. Mas por outro lado Shakespeare é bom por que escrevia de olho no shilling que cobrava de cada espectador (ver Panofsky). Assim como o teatro não se salvará apenas com a coragem de escrever peças que ninguém queira assistir, a literatura também não se salvará apenas com a coragem de escrever outros Finnegans Wake.’” 

“O amor é sempre resultado de percepções que temos do outro. A arte em geral sempre exaltou a visão (forma e movimento) e a audição (som e música) como elementos cognitivos do amor. O amor entre meus personagens, ao contrário, surge das percepções cinestésicas, olfativas e térmicas. A percepção vem através dos sentidos, Kant et cetera, não precisamos entrar nisso, o que quero dizer é que o amor é uma forma de percepção e, no caso de Os Amantes, uma forma também de transcendência.” (Pág. 119) 

“O escritor deve ser essencialmente um subversivo e a sua linguagem não pode ser nem mistificatória do político (e do educador), nem a repressiva, do governante. A nossa linguagem deve ser a do não-conformismo, da não-falsidade, da não-opressão. Não queremos da ordem ao caos, como supõe alguns teóricos. E nem mesmo tornar o caos compreensível. Duvidamos de tudo sempre, inclusive da lógica. Escritor tem que ser cético. Tem que ser compra a moral e os bons costumes. Propércio pode ter tido o pudor de contar certas coisas que seus olhos viram, mas sabia que a poesia busca a sua melhor matéria nos “maus costumes” (ver Veyne). A poesia, a arte enfim, transcende os critérios de utilidade de nocividade, até mesmo o da compreensibilidade. Toda linguagem muito inteligível é mentirosa.” (Pág. 105) 


FONSECA, Rubem. Bufo & Spallanzani. São Paulo: Companhia das Letras. 1991.
 


 

A insuficiência de nostalgia...

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015



...ou “A deformação masoquista da memória”, foi assim que Josef se referiu à apatia a que sentia do seu passado em sua terra natal. Essa ideia subversiva Milan Kundera retrata no romance “A Ignorância”.
O autor desenvolve toda a história em torno da nostalgia e explica, etimologicamente, que nostalgia “é, portanto, o sofrimento causado pelo desejo irrealizado de retornar” (Pág. 09). Esse sentimento liga-se também à ignorância: só há nostalgia daquilo de que não temos mais notícia. E ignorância é a palavra ou variante de nostalgia.

Após a queda do regime comunista no Leste Europeu, Irena viaja de volta a Praga após 20 anos de exílio em Paris. Chegando a sua terra natal, reencontra-a totalmente reerguida e modificada e percebeu que se tratava de um lugar de que não guardava nenhuma recordação.

“(...) a memória, para que possa funcionar bem, tem necessidade de um treino incessante: se as lembranças não forem evocadas, continuamente, em conversas com os amigos, elas desaparecem. Os exilados, reunidos em colônias de compatriotas, contam entre si até a exaustão as mesmas histórias, que, desse modo, se tornam inesquecíveis. Mas aqueles que não frequentam seus compatriotas, como Irena ou Ulisses, são inevitavelmente atingidos pela amnésia.” (Pág. 31)

Ao rever algumas velhas amigas, Irena teve a certeza de que para elas, o tempo em relação a si tinha parado e que só agora estava sendo retornado, ignoravam o fato de que retornava uma mulher madura, com uma vida atrás de si da qual se orgulhava. 

Em paralelo, o livro também conta a história de Josef, outro exilado que retorna a Praga para rever o que restou da família e reencontra o irmão depois de 20 anos que ainda morava na casa de sua infância.

“Ele toca a campainha e o irmão, cinco anos mais velho do que ele, abre a porta. Trocam um aperto de mão e se olham. São olhares de imensa intensidade e eles sabem bem do que se trata: face a face, os irmãos registram, rapidamente, discretamente, seus cabelos, suas rugas, seus dentes; cada um sabe o que procura no rosto à sua frente e cada um sabe que o outro procura exatamente a mesma coisa no seu. (...) procuram no outro o que transparece da morte.” (Pág. 48/49)

Irena reencontra Josef por acaso no aeroporto de Paris. Em comum, eles têm uma história de exílio e um sentimento profundamente nostálgico em relação à paisagem tcheca e são conduzidos pelo narrador a reviver uma história de amor que então, na sua terra, fora apenas iniciada.

Outros componentes emocionais enriquecem a obra, sempre com a marca da extraordinária leveza da escrita de Kundera.



- Outras citações:

 “E, sobretudo, no estrangeiro Josef se apaixonou, e o amor é a exaltação do tempo presente. Seu apego ao presente afastou as lembranças, protegeu-o contra as intervenções dela; sua memória não se tornou menos maldosa mas, negligenciada, afastada, perdeu o poder sobre ele.” (Pág.64).

“A memória, ela também não pode ser compreendida sem uma abordagem matemática. O dado fundamental é a relação numérica entre o tempo da vida vivida e o tempo de vida armazenado na memória. Nunca se tentou calcular essa relação e, aliás, não existe nenhum meio técnico de fazer isso; no entanto, sem grande risco de engano, posso supor que a memória não guarda senão um milionésimo ou um bilionésimo, em suma, uma parcela ínfima da vida vivida. Isso também faz parte da essência do homem. Se alguém pudesse reter na memória tudo que viveu, se pudesse a qualquer momento evocar qualquer fragmento do passado que quisesse, não teria nada a ver com os humanos: nem seus amores, nem suas amizades, nem suas raivas, nem sua faculdade de perdoar ou se vingar se pareceriam com os nossos.” (Págs. 99/100)




  


KUNDERA, Milan. A ignorância. São Paulo: Companhia das Letras: 2002. 

Como ser um bom escritor segundo Gustavo Flávio.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015




Primeiramente, você deve estar se perguntando quem seria Gustavo Flávio. Bom, ele é um famoso escritor, tem em seu currículo romances e ensaios de sucesso, entre eles “Comer” e “Foder”. E se você ainda não estiver reconhecendo essa figura, não se preocupe. É que Gustavo Flávio é um personagem fictício que aparece em dois romances do escritor Rubem Fonseca. Trago hoje para vocês sua segunda aparição, no romance policial “E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto”, no qual por meio de conversas e cartas enviadas ao seu advogado Mandrake e sua ex-mulher Amanda, divaga sobre os requisitos para ser um bom escritor, já que é bem ressaltado por Gustavo que não existe uma fórmula, mas há pré-requisitos que podem ser trabalhados.


Rubem Fonseca utiliza a experiência adquirida na formação em Direito e nos anos em que foi Comissário de Polícia para construir romances policiais marcados por uma prosa irresistível e contemporânea.

Em uma conversa com Amanda num restaurante, Gustavo Flávio destaca a primeira característica de bom escritor: a observação.

“No fim eu iria dizer para você que o papel do escritor é fazer o leitor ver o que ele, o escritor, viu. E o que o escritor vê não deve ser necessariamente a realidade convencional. Essa nossa conversa não era para ensinar você a ver o que pode ser visto, mas a ver o que não se vê. Você não pode adotar a semiótica de médicos e policiais, que através dos sinais que dispõem precisam descobrir uma verdade.” (Pág. 48)

Numa carta dirigida ao seu advogado Mandrake, Gustavo aponta outra característica do bom escritor e o que o levou a tornar-se um: vontade e motivação.

“Talvez seja essa a maior de todas as motivações para alguém tornar-se um escritor, para o artista criar: o conhecimento que o ser humano tem de sua própria finitude, a certeza de que vai morrer. (Vide Nietzsche). Mas o certo é que não importa qual o tipo de motivação, consciente ou inconsciente, eu falei isso para a Amanda, que diz que quer ser escritora, o importante é que a vontade seja muito forte.” (Pág. 62)

“E quanto a mim, o que me levou a tornar-me um escritor? Acho que a resposta é uma só: eu gostava tanto de ler que naturalmente passei a escrever. Lembro-me de que, ainda muito jovem, certas leituras me davam uma incoercível vontade de escrever (...). O destino normal do leitor fanático é se transformar num escritor.” (Pág. 63)

Gustavo Flávio ainda completa que todo leitor reescreve o livro que lê durante o processo de leitura. E, claro, sua motivação para escrever vem da paixão que tem pelas mulheres, que é demonstrada na trama da história. Apenas mencionei Amanda, por que foi com ela que Gustavo teceu os diálogos mais relevantes a respeito da arte de escrever. Mas, na verdade, existia um “quadrilátero” amoroso entre Amanda, Luiza, Silvia e nosso escritor, que por diversas vezes declarou para Mandrake seu amor pelas três. Apenas a título de esclarecimento, Luiza é sua atual companheira, Amanda sua ex-mulher e Silvia é esposa de um antigo colega de faculdade. Então digamos que ao falar de sua motivação para escrever, Gustavo falou com propriedade.

Mas dando continuidade às dicas de Gustavo Flávio, outra característica deve ser ressaltada: a imaginação.

“Você pode usar a realidade, como Balzac, Flaubert, Zola fizeram. Zola dizia que ele e todos os escritores naturalistas eram ‘anatomistas, analistas, compiladores de dados sobre a natureza humana, seguidores da verdade’. Se você, Amanda, como escritora, quiser usar sua experiência, os incidentes da sua vida, tudo bem, ninguém se livra do seu eu, apenas não exagere, lembre-se do que Gide disse (creio que foi Gide), um mau escritor escreve sobre sua vida, um bom escritor escreve sobre suas vidas possíveis, vidas no plural. Use a Vida, a sua e a dos outros. Suas memórias, aquelas que você carrega desde a infância e que ficaram no seu coração, parafraseando o que disse Aliosha Karamazov, podem salvar o seu romance. (...) E você tem que confiar na sua imaginação, mesmo correndo o risco apontado por Plínio, o Velho, de que sua imaginação a faça infeliz ou torne você uma delirante. (...) Sem imaginação não há literatura. A imaginação é a mãe da ficção, é a mãe da poesia, é até mesmo, como disseram Mommsem e Burckhardt, a mãe da História”. (Págs. 77 e 78)

Sem esgotar os ensinamentos de Rubem Fonseca, que nos vem passados por Gustavo Flávio, escrever exige paciência e, sobretudo coragem, já que a todo momento uma decisão tem que ser tomada.

E para finalizar, a trama se desenvolve em torno do assassinato de algumas amantes do passado de Gustavo. E, sem soltar spoilers, posso dizer que o final é surpreendente, como todo bom romance policial.




FONSECA, Rubem. E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.